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È assim que se dobra uma carta


Estava cansado de dizer a ela. Na verdade, tinha dias que me esquecia o quanto ela me irritava com essas coisas pequenas, idiotas. Mas o que mais me deixava bravo era o jeito como ela dobrava as cartas que me enviava uma vez por mês, todo dia 29. E a cada carta, eu ficava mais e mais irado.
Ela não entendia a diferença dos detalhes, bem que tentei ensinar. A cada carta, eu deixava uma pista de como fazer, de como eu queria que fosse.
Não adiantou, porque na inocência dos meus 18 anos queria que ela adivinhasse o meu egoísmo, o meu machismo.
Até que um dia, eu tomei coragem e lhe disse:

- Você não sabe dobrar as cartas, sinto como se fosse impessoal, obrigatório. Não gosto quando você me manda cartas assim por obrigação!

Aquilo deveria ter sido um alivio, tirei um peso dos ombros. Mas não foi, ela ainda não tinha entendido, se comportou de uma maneira tão masculina, que me senti uma mulher em crise existencial:

- Querido, que diferença isso faz. Pensei que a essência do ato que lhe importasse. Mas vejo que nunca está inteiramente satisfeito com os meus atos e demonstrações de afeto, não acha que está sendo radical? Não temos tempo para essas atitudes. O jeito que eu dobro a carta não diz nada sobre mim.

Dizia, o modo como ela dobrava as cartas definia cada detalhe da simples e rude personalidade que ela confeccionou aos pouquinhos diante de mim.
Não discuti. Respeitei, no entanto aquele jeito de fato me deixava inquieto.
E acabou, por acabar.

Os dias inevitavelmente passam, as coisas mudam, ou não. Se vão. E vão pra longe, que de tão perto parece o outro lado do mundo.
Ela não aprendeu a diferença que os detalhes fazem, o que eles causam, mudam.Nem é preciso estar ao lado dela para saber, a conheço bem para dizer com certeza o que digo. E do mais não sinto saudade, sinto pena da maneira sistemática e fria que ela vai sempre viver. Os lugares e as pessoas não vão interferir nisso, pois ela já não quer mais aprender, ela dobra as cartas do modo que julga certo, mesmo que isso seja bobo ou desnecessário saber.

Já é tarde, esquece...

2 comentários:

  1. Lindo,
    lindo, lindo!

    Li e quase chorei.

    Sabe...pouca gente consegue escrever sobre coisas simples de forma tão LINDA, Rosa.

    São nos detalhes q estão as coisas mais belas pra se escrever.

    E aposto como ninguém nunca pensou em falar sobre cartas dobradas. E sobre saudade.

    Lhe Amo

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  2. Adorei seu blog Rosa. Os textos são muito bem escritos e bonitos!
    Vou voltar sempre.
    Beijos

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